segunda-feira, 12 de outubro de 2015

A PRIMEIRA TRAVESSIA

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Era verão de 2006. Eu vivia na ilha verde, São Miguel. Meu visto tinha expirado, mas eu estava integrado no grupo de pesquisa da Universidade. Eu trabalhava dentro da boca de um vulcão cheio de água conhecido como lagoa das Furnas. Porém os trabalhos estavam reduzidos e eu estava determinado a fazer o caminho de Santiago de Compostela pela primeira vez. Eu estava numa ilha pertencente a um arquipélago, no meio do oceano atlântico norte e tinha a sina de caminhar. Meu dinheiro era pouco, vivia em uma comunidade estudantil alternativa que além de estudar, nas horas vagas pintávamos e fazíamos músicas. Escrevi uma carta à Capitania dos Portos daquela ilha com intuito de obter autorização de carona (boleia) em algum navio mercante que fosse de São Miguel para o continente. Obtive do Capitão do Porto a indicação para procurar as empresas de navios mercantes da cidade. Assim o fiz. Listei três que atuavam entre ilhas e continente e escrevi-lhes uma carta. A carta tinha o mesmo teor que aquela enviada para a Capitania dos Portos. Rezava que eu estava em formação na ilha, vivia de forma simples e queria fazer o caminho de Santiago a pé. Uma semana depois umas das empresas me retornou um email convocando para comparecer à Sede. Lá fui e conversei com os responsáveis pelos embarques. Disseram-me que a diretoria havia aceitado meu pedido. Eu iria embarcar no navio mercante São Rafael com destino a Lisboa e depois Porto. No dia “E” do embarque, me despedi dos amigos de casa e com apenas uma mochila e 150 euros fui para o porto mercante de São Miguel. O navio zarpou e durante 3 dias naveguei (o capitão navegou por nós) de São Miguel a Lisboa. Durante três dias e noites vi o nascer e o por do sol mais bonitos na imensidão do mar com o céu mais carregado de estrelas na escuridão das noites. Era impossível distinguir no horizonte o que era céu e a linha d´água. Após três dias cheguei na boca do Tejo de manhã bem cedo. Passei pela Torre de Belém à minha esquerda, por baixo da Ponte 25 de Abril e atraquei no porto de Santa Apolônia. O piloto – oficial da marinha mercante que tem funções de auxiliar a entrada ou saída das embarcações nos portos – subiu a bordo com o fiscal de documentos da tripulação. Assim que o navio atracou fui convocado à sala do Capitão do navio. O Capitão era um alemão de 2 metros, robusto, barbudo e sério que me fitou com um ar furioso. Não fitou apenas, esbravejou: - “Você a partir de agora está preso no navio!”. A minha peregrinação parecia ficar por ali, mas não ficaria por ali ao final. Na verdade não chegaria a Santiago, naquele investida, mas também poderia ter sido pior. O fiscal era um senhor mais calmo e compreensível. Ouviu com toda atenção minhas explicações sobre a ausência do visto, foi franco e ainda me explicou que eu tinha duas opções, ou melhor, dois destinos, nenhum deles escolhidos por mim, mas sim por ele próprio, o fiscal. Se eu saísse do navio era dever dele me extraditar e ele não queria fazer isso, pois estava convencido que minha intenção era boa, tanto as atividades e formações na ilha como a própria peregrinação. E como eu estava num navio de bandeira alemã, sob jurisdição do Capitão do navio, o próprio ordenou que eu ficasse preso no camarote do navio, até à volta a São Miguel. Essa volta duraria não somente três dias de viagem, mas três dias atracado em Santa Apolônia, mais um dia de viagem ao porto de Matosinhos no Porto. Só então dali teria mais três dias de viagem de volta à ilha verde de onde havia saído. A verdade é que enquanto o Navio São Rafael esteve descarregando e carregando mercadorias em Santa Apolônia, obtive uma informação dos marinheiros, já meus amigos durante a travessia, que o Capitão iria se ausentar por dois dias adentro de Lisboa. É evidente que fiz o mesmo, e confesso minha “fuga” do camarote do navio ao driblar os oficiais de máquinas ingleses. E veja bem que nesta oportunidade poderia ter colocado o pé na estrada e seguido clandestino até Santiago. Demoraria cerca de 50 dias em caminhada até lá, mas não iria viver como um fugitivo ainda mais prejudicar o camarada fiscal que me deixou permanecer na embarcação. Durante dois dias, muito quentes de agosto em Lisboa, percorri a marginal sem me afastar tanto do porto. Fui em direção à estação de Santa Apolônia, pisei o Terreiro do Paço sem cruzar o Arco da Rua Augusta para o centro da cidade e logo acima subi uma das ladeiras de Alfama até chegar ao Panteão Nacional. Minhas caminhadas durante dois dias foram por ali. No final da tarde de volta ao navio, preso ou livre, conseguia ver o céu alaranjado e do alto do mercante os dorsos de grandes tainhas nadando em cardumes. Na noite que precedeu a viagem ao porto de Matosinhos tive um pesadelo daqueles que não se esquece jamais. Sonhei com o terremoto de Lisboa ocorrido em 1755. Assustado e suando pelo calor que já fazia às 7 da manhã dei um pulo da cama com o navio já em movimento e quando olho para fora, estava passando justamente em frente à torre de Belém. Ali já sabia que estava novamente na boca do Tejo de saída para o norte. Meio dia mais e chegamos ao Porto, de noitinha. O navio entrou pela manhã apenas, já com as minhas informações atualizadas aos fiscais locais. Passaria meio dia em Matosinhos, e sem o Capitão no navio fiz mais um escape, tendo percorrido a orla, o mercado de peixes e a zona portuária do norte. Cheguei a procurar o Consulado do Brasil no Porto, ao pegar um ônibus até ao centro, mas não teria tempo de resolver minha situação, o navio zarparia dentro de 3 horas novamente rumo a São Miguel e eu tinha que voltar. Assim foram mais três dias de navegação rasgando o mar do oriente para o ocidente rumo ao Arquipélago dos Açores, de volta, acompanhado de golfinhos surfistas, tartarugas, peixes voadores e cagarros. Já próximo aviste ao longe as magníficas e imponentes silhuetas das ilhas de Santa Maria e São Miguel. Chegaria ao porto de Ponta Delgada – São Miguel, sem saber o que me aconteceria. E logo soube quando cheguei. Desembarquei direto para o SEF (Serviços de Estrangeiros e Fronteiras) onde um inspetor muito sério me atendeu. Ele já sabia dos meus feitos e por isso falou bastante tempo com tom rude referente ao visto. Quando chegou a minha vez de explicar, disse as mesmas coisas que havia dito ao Capitão da Capitania dos Portos, aos diretores da empresa mercante e ao fiscal de Lisboa; e agora ao inspetor do SEF: - “Eu sou um peregrino, sou um Sebastianista”. Uma semana depois com apoio da AIPA (Associação de Imigrantes dos Açores), fui até Vigo na Espanha, de avião, tratar o visto de estudos por um ano. Em outubro de 2006 pousei no Porto novamente para iniciar a primeira peregrinação até Santiago de Compostela, que durou 12 dias de caminhada, 6 dias de navegação e 4 dias da mais libertária prisão. 
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