sexta-feira, 17 de março de 2023

O FRUTO DOS AÇORES (2005)

Havia chegado pela segunda vez ao Arquipélago. Eu seguia cabreiro com aquela máxima de não ficar como o peixe dentro do aquário, limitado, sobre aquilo que a Professora de química no Colégio Cataguases nos dissera na virada do milênio. Então, as ilhas do Oceano Atlântico Norte me mostravam o quanto e como eu deveria crescer. Para longe eu voltava. A comunidade do Passal 74, em Ponta Delgada já existia como casa de estudantes Erasmus, misturados aos nacionais. Eu voltava para continuar os estudos da vida em Biologia e a Marinha (aquática ao fim ao cabo), mas o ano letivo começava apenas 6 meses a frente do calendário. Com a primavera numa mão e o verão noutra, candidatei-me num programa de observadores de pescas durante a faina dos pescadores até de outros arquipélagos e d´outras ilhas, ali na zona marítima dos AZ. Um observador embarcado em uma traineira/atuneiro colhe dados físicos, químicos e biológicos gerais, protegendo golfinhos principalmente, e outros seres, de mortandades ilegais e outras lesas que pudesse haver durante a pescaria artesanal (manual), algumas vezes bruta na natureza de pescadores ao estilo Brutus do Popeye. Estive embarcado por cerca de 5 dias, e somente nessa campanha, devido aos movimentos e oscilações que trago de outras vidas. Os enjoos sempre passam quando se deita no balanço das ondas de uma embarcação rasa, o líquido do ouvido aquieta-se, mas quando em pé, os ossos escorregam nas cartilagens e almofadas internas da coluna central, ainda mais quando à procura de fantasmas (no respiro das baleias gigantescas), pilotos, tartarugas, cagarros, tintureiras, dourados, espadartes, atuns, moluscos, sardinhas e peixes voadores no binóculo, anotações e manuseios de utensílios nos campos dos formulários das pesquisas. No meu limite fui ao mestre da embarcação, José Nunes – por curiosidade é o nome do meu pai – que encostou o bico do barco (proa) na ponta do farol do Porto da Praia da Vitória na Ilha Terceira Jesus Cristo. Já tenho contado e escrito que dali, fui para Angra num verdadeiro Heroísmo, tendo dormido Hospitalário na noite de Sanjoaninas, e embarcado novamente na manhã seguinte num Cruzeiro para o Faial e o Pico, cheio de equipamentos. No departamento do Programa (DOP), fiquei escalado para receber os relatórios dos outros observadores que passavam mais dias no mar do que dias em terra, e inserir as infos num banco informático como peça servente presente, de tudo que se pode comparar com os dados passados e os futuros (que podem ser os de hoje até) de toda a significância do trabalho que é em suma o estudo da vida, nesse caso o estudo da vida marinha. A base terrestre dos observadores ficava na Madalena do Pico. Via-se da janela o canal ponteado com os ilhéus deitado e em pé, todos os dias, exceto quando em poucos dias de verão o céu confundia-se com o mar. Numa das tardes em passeio com uma das observadoras desembarcadas que vinha da terra do Minho, queimados de sol e sorridentes por aquela costa fixa não se movimentar tão bruscamente com o vulcão dos capelinhos e o Piquinho do Pico, encontramos um casarão abandonado. Era um casarão cinza e branco porque suas estruturas mais visíveis eram de pedra cortada, também vulcânica, não tinha teto, paredes ao chão, não era abrigo humano, nenhum resquício recente de estada, madeiras furadas e todas podres, nem andarilhos ou romeiros dormiriam ali. Eram as ruínas de um casarão abandonado, um escombro misto de colapso e fuga rápida dos antigos habitantes, o quintal de frente estava tomado por matagal, não se chegava fácil até ao spray nas pedras. A maresia sim, chegava no casarão impregnado de sal, e talvez também por isso maquiava aquele casarão quase vazio. Dentro dele, o piso se via batido e rachado nos clarões de mato, alguns lugares estampados e quebrados remetendo ou a cozinha ou sala, e os poucos móveis de madeira não eram completos, mas estavam pedaços grandes revirados. Dentre esses móveis, havia 3 baús bem grandes empilhados que uma pessoa sozinha quebraria algumas vértebras para desempilhá-los. Surpresos e já ao fim da exploração, abrimos os três baús e dentro deles tinham coisas colocadas como roupas, candelabros (“luz da época”), algumas fotografias bem rasuradas e manchadas, tinha bichos vivos como baratas e outros artrópodes (bichos rasteiros e voadores), insetos, lacraias, centopeias, alguns vertebrados rápidos como os lagartinhos da ilha que predavam logicamente essas presas. Havia mofo forte, estava tudo bem deteriorado, algumas coisas que se pegava se desfazia como um lenço de papel provavelmente que envolvia algum pão ou alimento, e copos, alguns metálicos outros de barro... Dentro dos três baús tinha sobretudo roupas, alguns utensílios, nenhuma joia ou peça reluzente de histórias de piratas. Havia cartas num desses baús. Blocos dobrados, maços de cartas. A menina do Minho e eu decidimos que não iríamos levar nada mais do que as cartas. Todo o resto ficou nos baús, sem grandes mexericos, porque os baús não se configuravam explícitos de algum controle privado, não era de tudo limpo, fácil e nítido. Estávamos seguros que estávamos na linha da costa e andando adentramos o esqueleto de um casarão abandonado, um sítio tomado pelas intempéries. O achado estava à beira mar, camuflado tanto a arquitetura num todo quanto os itens que foram alocados nos baús e por algum motivo foram deixados. Tínhamos encontrado um lapso da história aparentemente marcante desde o tempo de alguma partida, das pessoas que ali habitavam num tempo consideravelmente longe, passado. Essa história estava se ocultando ou se perdendo aos poucos e veio à tona em 2005. Não fosse esse achado da menina do Minho e a sua Cia., estaria lá até hoje, ou até alguém tê-lo encontrado e tendo feito sabe lá o que fosse. Não empilhamos os baús, mas fechamos e colocamos lado a lado. Então, decidimos levar apenas as cartas com intuito de consumar mesmo o achado e expor cada um à sua maneira. E assim fizemos. Divulgamos inclusive para os outros colegas observadores que chegavam cansadíssimos e bronzeados das observações em alto mar, à nossa chefia e em outras ocorrências em relato. Logicamente a história contada não foi muito empolgante para quem ouvia, nem se interessaram tanto por ver aqueles papéis velhos, mofados como se tivessem caído ao mar e sobrevivido, enfim. Naquela época, dividimos as cartas. Eu fiquei com um maço e a menina do Minho ficou com outro maço. Ela voltou para o norte do continente e eu voltei para a ilha de São Miguel, para a Rua do Passal 74. Esteve comigo como um tesouro semiescondido por dois anos, e como sempre, ao fim desses dois anos comuniquei primeiro ao meu Tutor que em seguida indicou-me um Doutor da História daquela casa acadêmica do complexo científico de Ponta Delgada. As cartas remetem à “família Rosa”, que fora desde há tempos nomeados aos braços das regências do império português. Nas cartas há menções e relatos históricos rudes do tempo daquela época, a tristeza que era a índole do “Homem armado e poderoso” comercializar pessoas como escravos levados aos Açores. As cartas revelaram em análises até onde sei, posteriormente, o que reza sobre posses de vinha, terras, funções, heranças, balanças de natalidade e mortalidade, papéis com brasões, marcas d´água, desenhos e símbolos da rosa dos ventos, nomeações de Juízes de Fora que comandariam o cultivo de pés de uva de uma estirpe tal que suportava a maresia e o solo, e que virariam vinho para os czares russos, passando antes pela Inglaterra e o resto da Europa. A descoberta dessas cartas não me renderam riquezas, exceto um passe (pass/upgrade) pelo socorro dos itens, que neste caso foi repassado para um historiador do Arquipélago que tratou devidamente, estudou e incrementou em suas produções de investigação e pesquisas esse achado. Soube que ficaram expostas em alguns espaços culturais da ilha de São Miguel e que voltariam à Ilha do Pico, com certeza pertencente ao acervo público regional. É tempo de dizer que existia uma carta dentre as cartas que era a carta da Rainha. Dona Maria I (“a louca”), mãe de Dom João VI, avó de Dom Pedro I, bisavó de Dom Pedro II - último imperador do Brasil. Depois que desfiz das cartas, coloquei uma mochila nas costas já sarada, voei para Lisboa e junto com a menina russa-nórdica, cruzamos a península ibérica e o cadarço da itálica até Roma... Um ano depois, nasceu a Iara S.T.P.N.

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